sexta-feira, 5 de março de 2010

Mapa analítico da América Latina contemporânea – uma perspectiva da matriz libertária

Mapa analítico da América Latina contemporânea – uma perspectiva da matriz libertária

Bruno Lima Rocha, cientista político com doutorado e mestrado pela UFRGS, jornalista formado na UFRJ; docente de comunicação e pesquisador 1 da Unisinos; membro do Grupo Cepos e editor do portar Estratégia & Análise.

Eis o artigo.

Retorno para a contribuição semanal de difusão teórica e de pensamento político de base epistemológica compartilhando uma possibilidade de mapa analítico do terreno onde os conceitos operacionais aos quais me filio sejam aplicáveis. Para operacionalizar as formulações que tem como objetivo permanente a construção de um Poder Popular onde implique a radicalidade da democracia elevada à sua máxima exponencial, o instrumental teórico se apresenta na seqüência, na forma de mapa analítico, apresentando elementos que são generalizáveis na América Latina. Vamos aos elementos na forma de texto contínuo.

A sociedade capitalista é dividida em classes, sendo que as sociedades de capitalismo periférico e semi-periférico que se encontram nos países da América Latina também se dividem em classes com distintos cortes como nível de escolaridade, elite posicional, propriedade e meios de acumulação da oriundos tanto da financeirização, da propriedade direta de meios ou recursos estatais. Mesmo com esta divisão de classes, seguindo os padrões contemporâneos do Brasil, sub-divididas em A, B, C, D e E; sendo que a não ser a A, as demais variam sua posição diante dos poderes reais constituídos, há elementos de transcendência do problema de classes, sua diferenciação e a possibilidade destas terem suas minorias organizadas para a luta social. A própria dimensão ideológica transcende a divisão de classes, mas é fundamental para este tipo de embate, visto que classe implica em antagonismo e todo o conflito, para superar o imediatismo da tática e das urgências sempre presentes, deve conter um marco estratégico e um longo prazo.

Por isso afirmamos que entre estas sociedades, existe um grau de unidade e identidade. Como todo conceito, signo, símbolo ou referência, a unidade e identidade estão em disputa, e tem distintas significações. No caso do Continente, mesmo admitindo que o tema pode entrar em controvérsias, este analista se filia na tradição que assume por tanto que existe a disputa do conceito identitário e que sim, existe América Latina.

No Continente, as sociedades de classes dos países da América Latina são desiguais entre si, mas tem alguns eixos e bases semelhantes. Destaco duas como estruturais: não importando o grau de desenvolvimento econômico, é alto o grau de informalidade e o desemprego é estrutural; não importando o grau de desenvolvimento político, é alto o grau de insatisfação com a democracia representativa. As desigualdades extremas entre classes sociais é algo padrão nestas sociedades, havendo também camadas inteiras da população que são ou desprovidas, ou pouco assistidas, em seus direitos básicos.

Diante desse quadro, existem lugares de não-Justiça e territórios onde, por diversas razões – desde insurgência armada até paramilitarismo – o Estado é visto com desconfiança, não presta assistência aos seus cidadãos e muitas vezes, o ente estatal atua como força de ocupação. A não assistência, a não-Justiça e a falta de direitos leva a idéia de nação como coletividade de semelhantes com ancestralidade e sentido comum em algo muito figurado. Perante este conflito latente, a operação dos poderes de fato materializa o conceito de dividir para reinar.

Portanto, a configuração da atual sociedade de classes é fragmentada e fragmentadora. Existe assim uma lógica estruturante da fragmentação social, agindo sobre as mais diversas camadas e setores de classe. A fragmentação não é um fenômeno isolado nem localizado, é transversal a toda a sociedade. Por conseqüência, os elementos de unidade são escassos e sua posse, um fator estratégico.

Isto se dá, mesmo com a evidência de que a maioria das populações da América Latina encontra-se nas classes mais baixas (C, D e E). Deste modo, os distintos setores de classe têm dificuldade em se verem de forma unitária, suas demandas têm um custo político, organizacional e comunicacional maior que em etapas anteriores do capitalismo. Na bipolaridade e no período das fronteiras ideológicas, o custo repressivo era maior, mas em compensação, as sociedades de classes sendo menos complexas permitiam o aumento do poder de barganha e conquista das classes subalternas.

A ausência de maior unidade nas classes mais baixas facilita a dominação de fato embora dificulte a institucionalização da democracia representativa. Já o inverso também é válido, pois quando há maior unidade nas classes mais baixas, e há interesse estratégico, a democracia representativa pode ser ou não reforçada por esta unidade de classes oprimidas. Longe de negar a luta de classes, o que faço é o exercício do reconhecimento de que esta atual configuração de classes fragmentadas implica formas também atuais na luta de classes, que segue existindo, mas de forma mais complexa do que no período da bipolaridade e da industrialização.

Esta luta de classes atual na América Latina se vê permeada por temas identitários, de formação nacional e étnica, de territorialização; também de disputa por concepção de democracia, com distintos graus de violência, com disputa de projeto nacional e outras formas de luta associadas (não subordinadas) à luta econômica e reivindicativa. Este analista sempre parte do pressuposto da não-determinância de uma esfera (Econômica, Política, Ideológica) sobre outra e defende a análise baseada na complexificação da interação estratégica.

Neste contexto, o conflito das formas de democracia direta com a democracia representativa é latente ou já deflagrado, uma vez que os operadores da política institucional têm interesse em desorganizar as entidades do tecido social das classes baixas, aumentando sua fragmentação e subordinando-o (ao tecido e suas camadas organziadas) a política institucional. Ao defender a democracia representativa como conceito válido, tanto a ciência política hegemônica como o sentido gerado na mídia corporativa (incluindo seus “especialistas”) termina por fazer a fundamentação teórica desta desorganização de cima para baixo, na medida em que estes centros de saberes ignoram o fazer político além da democracia representativa e até certo ponto institucionalizada, como a política de conselhos ou mesas técnicas.

Este é um dos fatores que fazem com que recursos políticos como o clientelismo, somado com a criminalização da pobreza, somado ao conflito entre pobres e a disseminação da economia ilegal (capitaneada pelo tráfico de drogas de baixo custo, fragmenta ainda mais o tecido social - em especial o das regiões conurbadas e metropolitanas – diminuindo a capacidade das teias de atarem e unificarem o tecido social-produtivo e reforça um comportamento político baseado em cultura individualista, paroquial e de curtíssimo prazo. Neste universo, o senso comum e a lógica da sobrevivência operam como barreira de entrada das idéias de transformação estrutural da sociedade.

Nesta legitimação da não-política como “única política democrática” válida, a ação da mídia corporativa, comercial e de massa, reforça e acentua este comportamento político narrado acima. Pelos pressupostos deste analista, a esfera ideológica é considerada como estratégica para qualquer tipo de alteração social profunda. Assim o trabalho comunicacional deixa de ser subordinado a um determinado projeto específico e utilitário e se torna a pré-condição de disputa de hegemonia. Sem vitórias táticas de relevância na Guerra de 4ª Geração, não há sequer possibilidade de vitória insurgente. Não há como incidir de forma profunda em nenhum setor social sem a elaboração, difusão e troca simbólica a partir de um discurso-síntese. Tal discurso só pode existir no cotidiano das maiorias desorganizadas através da ação comunicacional.

A matéria prima onde se materializa o Poder Popular necessita da recomposição deste tecido social, realizada a partir de objetivos comuns e inimigos comuns, podendo reforçar ou recriar formas atuais de luta de classes. O emprego dos pressupostos da interdependência das esferas Econômica, Política e Ideológica aponta para uma análise onde os distintos temas confluem para uma possível nova acumulação de forças. Supera-se assim as premissas de uma falsa polêmica, porque as questões que em tese estariam separadas na análise e no discurso praticado hoje se veriam confluindo a partir da possibilidade de um discurso-síntese e de uma meta palpável no longo prazo (o Poder Popular através da Democracia Participativa, Direta, Substantiva e Deliberativa).

A recriação destas formas de luta de classes, praticando a luta reivindicativa concomitante da extração de parcelas da oligarquia para o povo organizado, pode implicar em situações limite tanto para o sistema político como para a concepção de democracia representativa. É por isso que este analista, dentro do rigor necessário, se vê também como instrumental de incidência para a radicalização democrática (contribuindo com seu grão de areia no mundo das idéias e das análises de maior fôlego), visando o aumento de participação das maiorias e dando formas reais para que os setores de classes oprimidas tomem parte nas decisões fundamentais das sociedades concretas onde vivem.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=28218

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